Quando me mudei para a Austrália há oito anos, confesso que meu conhecimento sobre vinhos australianos era limitado. Como muitos brasileiros, associava a produção vinícola australiana basicamente ao Shiraz encorpado e aos vinhos comerciais que ocasionalmente chegam às nossas prateleiras. Mal sabia eu que estava prestes a descobrir um universo vinícola tão diverso e sofisticado que mudaria completamente minha percepção sobre o que a Austrália tem a oferecer no mundo dos vinhos.
A Austrália além do Shiraz
A Austrália possui mais de 65 regiões vinícolas, cada uma com características únicas de solo, clima e tradições. Enquanto o Shiraz (ou Syrah, como é conhecido em outras partes do mundo) continua sendo o carro-chefe, representando cerca de 30% da produção total, a diversidade de uvas cultivadas aqui é surpreendente.
As regiões vinícolas australianas se espalham por um continente inteiro, criando um mosaico de terroirs que permite o cultivo de variedades que vão desde as resistentes ao calor como Grenache e Mataro (Mourvèdre) até as que preferem climas mais frios como Pinot Noir e Riesling.
Barossa Valley: O Coração do Shiraz Australiano
Localizado a cerca de uma hora de Adelaide, no sul da Austrália, Barossa Valley é possivelmente a região vinícola mais emblemática do país. O que torna esta região verdadeiramente especial são suas vinhas antigas – algumas entre as mais antigas do mundo, plantadas na década de 1840 por colonos alemães.
O Shiraz de Barossa é reconhecível instantaneamente: encorpado, rico em álcool (frequentemente acima de 14%), com notas intensas de frutas escuras maduras, chocolate, especiarias e aquele toque característico de eucalipto que muitos consideram a assinatura dos vinhos australianos.
Vinhos para conhecer:
- Penfolds Grange: considerado o vinho ícone da Austrália
- Henschke Hill of Grace: produzido com vinhas plantadas na década de 1860
- Torbreck RunRig: um Shiraz potente com pequena adição de Viognier
Harmonização: Estes vinhos robustos pedem carnes de sabor intenso. Na Austrália, o clássico é servir um Shiraz de Barossa com cordeiro assado. Pessoalmente, adoro harmonizá-lo com um brisket (peito bovino) defumado lentamente ou com queijos azuis potentes.
Margaret River: A Borgonha Australiana
Na costa oeste da Austrália, a cerca de três horas ao sul de Perth, encontra-se Margaret River, uma região relativamente jovem (os primeiros vinhedos comerciais foram plantados na década de 1970) que rapidamente se estabeleceu como produtora de alguns dos melhores vinhos brancos da Austrália.
Influenciada por brisas marítimas do Oceano Índico, Margaret River possui um clima mediterrâneo que favorece variedades como Chardonnay, Sauvignon Blanc e Cabernet Sauvignon. Os Chardonnays daqui são frequentemente comparados aos da Borgonha francesa devido à sua elegância e complexidade.
Vinhos para conhecer:
- Leeuwin Estate Art Series Chardonnay: considerado um dos melhores Chardonnays do hemisfério sul
- Vasse Felix Heytesbury Chardonnay: mineral e complexo
- Cullen Diana Madeline: um blend bordeaux de Cabernet Sauvignon e Merlot produzido biodinamicamente
Harmonização: O Chardonnay de Margaret River, com sua acidez vibrante e notas de frutas cítricas, é perfeito com frutos do mar, especialmente camarões grelhados ou barramundi (um peixe australiano). Os Cabernets harmonizam maravilhosamente com o famoso steak au poivre.
Clare Valley e Eden Valley: O Renascimento do Riesling
Quando mencionamos Riesling, geralmente pensamos na Alemanha ou Alsácia. No entanto, a Austrália produz alguns dos Rieslings mais distintos e ageáveis do mundo novo, particularmente nas regiões de Clare Valley e Eden Valley, ambas relativamente próximas a Adelaide.
Ao contrário de seus primos europeus, que frequentemente possuem algum dulçor residual, os Rieslings australianos são tipicamente secos, com acidez cortante e aromas intensos de limão, lima e ocasionalmente aquela nota de “petróleo” que os apreciadores de Riesling tanto valorizam.
Vinhos para conhecer:
- Grosset Polish Hill Riesling (Clare Valley): considerado por muitos como o melhor Riesling australiano
- Jim Barry The Florita Riesling (Clare Valley): intenso e estruturado
- Pewsey Vale The Contours Riesling (Eden Valley): um vinho que é lançado apenas após cinco anos de envelhecimento na garrafa
Harmonização: Estes Rieslings secos e vibrantes são perfeitos com comida asiática, especialmente pratos tailandeses ou vietnamitas com notas cítricas e ervas frescas. Também harmonizam maravilhosamente com ostras frescas e ceviches.
Yarra Valley: Elegância em Clima Frio
A apenas uma hora de Melbourne, Yarra Valley é uma das regiões vinícolas de clima frio mais importantes da Austrália. Especializada em variedades como Pinot Noir e Chardonnay, esta região produz vinhos de elegância notável, frequentemente com menor graduação alcoólica e maior acidez do que aqueles das regiões mais quentes.
Yarra Valley também está na vanguarda do movimento natural wine na Austrália, com diversos produtores experimentando fermentações selvagens, mínima intervenção e baixo uso de sulfitos.
Vinhos para conhecer:
- Giant Steps Applejack Vineyard Pinot Noir: elegante e complexo
- Oakridge 864 Chardonnay: um branco com precisão e finesse
- Mac Forbes EB20 Arneis: representando a experimentação com variedades italianas
Harmonização: O Pinot Noir de Yarra Valley, com sua estrutura leve e notas de frutas vermelhas, harmoniza perfeitamente com pratos de pato, especialmente o duck à l’orange. Os Chardonnays mais elegantes são perfeitos com pratos de cogumelos selvagens ou uma simples tarte flambée.
Inovação e Sustentabilidade: O Futuro do Vinho Australiano
Uma das características mais empolgantes da cena vinícola australiana é sua disposição para inovar. Enquanto respeitam a tradição, os produtores australianos estão constantemente experimentando com:
- Variedades alternativas: Resposta inteligente às mudanças climáticas, variedades mediterrâneas como Tempranillo, Sangiovese, Fiano e Vermentino estão ganhando espaço.
- Viticultura sustentável: A Austrália é líder em práticas sustentáveis, com um número crescente de vinícolas adotando métodos orgânicos e biodinâmicos.
- Minimal intervention: O movimento de vinhos naturais encontrou um lar fértil na Austrália, com produtores jovens criando vinhos de mínima intervenção que expressam puramente o terroir.
- Técnicas de vinificação: Da fermentação em ânforas de cerâmica à experimentação com tempos estendidos de contato com as cascas em vinhos brancos, a inovação técnica é constante.
Desmistificando o Vinho Australiano para Brasileiros
Uma das alegrias do meu trabalho como chef na Austrália foi introduzir colegas e amigos brasileiros a vinhos australianos que desafiam os estereótipos. Aqui estão algumas dicas para quem quer explorar estes vinhos:
- Procure vinhos de produtores boutique: Embora marcas como Yellow Tail e Jacob’s Creek dominem as exportações, elas representam apenas uma fração do que a Austrália oferece. Procure produtores menores, mesmo que sejam mais difíceis de encontrar.
- Explore além do Shiraz: Experimente um Riesling de Clare Valley, um Cabernet de Coonawarra ou um espumante da Tasmânia.
- Preste atenção à região: A Austrália é um continente inteiro, com climas que variam do mediterrâneo ao continental e marítimo. A região de origem diz muito sobre o estilo do vinho.
- Não tenha medo de rótulos criativos: Diferente dos franceses ou italianos, os australianos adoram nomes e rótulos divertidos e criativos. Não julgue um vinho pela aparência irreverente de seu rótulo.
Uma Conexão Pessoal
Nos meus anos na Austrália, tenho tido o privilégio de visitar diversas regiões vinícolas e conhecer produtores apaixonados. O que mais me impressiona é como o vinho faz parte da cultura cotidiana – não como uma bebida elitista, mas como um elemento que conecta pessoas, complementa a comida e celebra o lugar.
Quando servia na cozinha de um restaurante em Melbourne, frequentemente discutíamos com o sommelier as melhores harmonizações para os pratos do dia. Foi através dessas conversas que aprendi que um bom vinho não precisa ser caríssimo ou vir de uma região com séculos de tradição – precisa apenas expressar autenticamente seu terroir e ser feito com integridade.
A próxima vez que você encontrar um vinho australiano que não seja das grandes marcas comerciais, dê uma chance. Você pode se surpreender, assim como eu me surpreendi, com a diversidade, qualidade e caráter que a Austrália vinícola tem a oferecer.
Você já experimentou algum vinho australiano que o surpreendeu? Ou tem curiosidade sobre alguma região ou estilo específico? Compartilhe nos comentários!